Lady Gaga enche deserto de música 17 DE ABRIL DE 2017 00:01 Ana Rita Guerra



Lady Gaga enche deserto de música
17 DE ABRIL DE 2017 00:01
Ana Rita Guerra
Foi uma edição explosiva do festival de música e arte, o Coachella, que invade o deserto californiano todos os anos. Lady Gaga e Radiohead não deixaram os fãs sem a glória merecida.
Quando Lady Gaga entrou no palco principal do Coachella Valley Music and Arts Festival, no sábado à noite, viveu-se o momento mais apoteótico deste ano. Não é coisa pouca para um dos eventos musicais mais emblemáticos do mundo, onde gigantes se cruzam com artistas desconhecidos e celebridades partilham canapés com adolescentes ricos da Califórnia. A controversa artista, que aproveitou para estrear um novo single, foi a primeira artista feminina a ser principal cabeça de cartaz numa década. A última tinha sido Björk, em 2007, e foi por acidente que Lady Gaga apareceu no centro do cartaz em 2017 - a cantora substituiu Beyoncé, que está grávida de gémeos e foi aconselhada pelos médicos a cancelar a atuação.
"Perguntaram-me se não tinha receio de tocar às onze e meia da noite. Disse que não: estou a tocar para os pesos-pesados do Coachella!", gritou Lady Gaga, depois de uma entrada triunfante e "Love Game", do primeiro álbum. Toda vestida de preto, adicionando acessórios aqui e ali, a cantora tocou até perto da uma da manhã e não se limitou a passar revista à sua carreira, que já faz dez anos: também fez a estreia absoluta do novo single "The cure", que ficou disponível no iTunes logo a seguir ao concerto. Gaga tocou músicas de todos os seus álbuns, desde "Just dance" a "Alejandro", "Venus", "You and I", "Speechless" e uma versão ao piano de "Edge of Glory." "Born this way" foi uma das maiores explosões da noite, com toda a audiência a saltar e Lady Gaga a cantar em cima de uma estrutura elevada com os seus dançarinos. Quando soaram os primeiros acordes de "Telephone" ainda houve uma pequena esperança que aparecesse Beyoncé, apesar de grávida, para cantar ao vivo a sua parte. Mas não, não houve convidados. Não foram precisos. Lady Gaga comandou uma noite que encheu completamente o recinto em torno do palco principal, algo que não aconteceu com Radiohead na noite anterior. O encore, como não podia deixar de ser, foi duplo: Poker Face e Bad Romance fecharam uma noite memorável, com a ajuda de fogo de artifício e confetis. "Adoro-vos!", despediu-se a artista. "Cheguem bem a casa!".
O recinto ainda tinha dezenas de milhares de pessoas naquele momento, "a hora das bruxas", como disse Lady Gaga antes de desaparecer nos braços de um bailarino. Sábado foi, sem dúvida, o dia mais forte de todo o festival. No palco Outdoor, os britânicos Bastille puseram milhares de pessoas a dançar sob um sol abrasador, entre êxitos do primeiro álbum "Bad Blood" e avanços do segundo trabalho, "Wild World." Autograf encheram o Sahara e Rósín Murphy, que ficou conhecida nos anos noventa como parte dos Moloko, pôs o palco Gobi a mexer durante quase uma hora.
Lady Gaga conseguiu escapar aos problemas técnicos que quase rebentaram com o concerto dos Radiohead, os cabeça de cartaz na sexta-feira. Depois de uma atuação fenomenal de Father John Misty, o ex-baterista dos Fleet Fox que se assumiu como cantor do apocalipse existencial, entraram os The xx para uma grande multidão, que cantou e dançou quase todos os hits. "Crystalized" e "On hold", o mais recente êxito, foram os hinos de uma audiência muito nova que operou uma debandada quase completa assim que os britânicos saíram de palco. A média de idades no Coachella parece diminuir de ano para ano, e por isso não é surpreendente que estes adolescentes e jovens adultos estivessem mais interessados no DJ Shadow e Capital Cities em palcos secundários que nos Radiohead no palco principal. A banda de Thom Yorke entrou em palco com alguns minutos de atraso e começou de forma lenta, quase etérea, demorando nos acordes de "Daydreaming" e "Desert Island Disk." À terceira música, "Full stop", as coisas começaram a mexer, mas o sistema de som não aguentou: de repente, as colunas silenciaram-se e a voz de Thom Yorke foi engolida por uma falha técnica, sem que a banda se apercebesse. Após uma paragem de alguns minutos, os músicos voltaram ao palco e prosseguiram com o set, que nos levou em viagens multimédia por entre os acordes de "Airbag", "15 Step" e "The National Anthem." O impensável, algo que nunca tinha acontecido a um cabeça de cartaz em 18 anos de Coachella, voltou a suceder. O sistema rebentou uma segunda vez e Thom Yorke teve de suspender o concerto e fazer toda a gente sair de palco. "Não o culpo", dizia um fã, estarrecido com o que estava a suceder. Em vez de assobios, a audiência batia palmas e dava gritos de encorajamento, mas foram muitos os fãs que desistiram. Afinal, o Coachella tem meia dúzia de palcos, tendas eletrónicas, instalações de arte e outras atividades para descobrir - não há tempo a perder com falhas técnicas. Quem ficou conseguiu aproximar-se mais do palco e foi recompensado com um regresso rápido da banda, que desta vez conseguiu completar o set de 22 músicas e mais de duas horas sem novas interrupções. Melhor, Thom Yorke e companhia ofereceram ao público uma rendição memorável de "Creep", a música que os tornou conhecidos em 1993, quando muitos destes festivaleiros ainda nem tinham nascido. Foi uma surpresa, dada a raridade da performance ao vivo desta música. "Não posso crer que eles estão a tocar isto!", exclamava-se na audiência. A banda saiu de palco, mas ainda regressou para um encore de cinco músicas. "Karma Police" fechou um concerto que acabou por ser triunfante, apesar dos problemas técnicos.
Mais que música, um acontecimento
É notória a transformação do Coachella ao longo dos últimos anos. A Golden Voice, que organiza o festival no deserto da Califórnia, adicionou 80 mil metros quadrados ao já vasto espaço do Empire Polo Club, que comporta 99 mil pessoas por dia. Os passes de três dias custam 399 dólares, enquanto os VIP são 899 dólares - e todos esgotaram em menos de três horas, antes mesmo de anunciado o lineup. É que já ninguém parece vir por este ou aquele artista; vêm pela experiência e para descobrir artistas novos. Quem passa pelo palco principal normalmente já tem um nome estabelecido - por exemplo, Bon Iver antes de Lady Gaga no sábado, Lorde antes de Kendrick Lamar no domingo. Nos outros palcos, há bandas desconhecidas de rock alternativo, DJs que estão a lançar-se e um número cada vez maior de artistas de rap; ScHoolboy Q, Banks & Steel e Future foram alguns dos nomes mais sonantes. Aliás, é também por isso que alguns destes palcos secundários - Mojave, Outdoor, Gobi - ficam completamente esgotados, deixando centenas de pessoas de fora e por vezes recebendo fãs mais entusiasmados que o palco principal.
Com temperaturas de 35 graus durante o dia, muitos festivaleiros procuram as sombras nos jardins de cerveja - só é permitido beber álcool dentro destes espaços - e em torno das instalações de arte. Este ano, há uma novidade chamada "Antártica." É uma experiência 360º numa estrutura com 18 metros de altura, que inclui um vídeo de cerca de dez minutos com fotografias reais e imagens geradas por computador. A missão é estimular os sentidos e encaixa bem dentro daquilo em que o Coachella se tem transformado: um festival onde a música é tão importante quanto a arte, e onde ser fotografado é tão importante quanto ver e ser visto. A tenda VIP, como habitualmente, esteve cheia de celebridades - este fim de semana houve aparições de James Franco e Kylie Jenner, além de atores de séries que estrearam recentemente, como "13 Reasons Why" da Netflix.
Durante três dias, estar em Indio é como entrar num universo alternativo, onde nada tem de fazer sentido e onde todas as extravagâncias são permitidas. Mesmo que isso signifique ver dois séniores de barbas brancas vestidos com um arco-íris de crochê ou uma quantidade anormal de fatos espaciais ao estilo Spice Girls em 1997. Não há tempo nem espaço neste festival, onde é possível deitar-se na relva a olhar para uma manada de unicórnios gigantes feitos de retângulos em frente ao palco principal. Ou mirar-se em milhares de espelhos côncavos num farol virtual criado pelo artista brasileiro Gustavo Prado para lembrar que estamos todos interligados. Como disse Bon Iver no final do concerto, "Amem toda a gente, não apenas aqueles que estão no vosso lado da barricada." Haverá sítio onde a mensagem ressoe melhor que neste estado tão multicultural da Califórnia?
A nostalgia vintage da geração pós-millennial
A moda oficial do Coachella é pequena e curta, com muita pele à mostra, pó brilhante por todo o corpo (tanto homens como mulheres), tatuagens falsas, fitas nos cabelos à anos setenta e óculos espelhados. A cadeia sueca H&M é parceira oficial e criou uma coleção específica para o festival, à semelhança do ano passado. Mas o que atraiu maiores atenções foi a coleção de peças comemorativas, com inspiração vintage, que no sábado já estavam quase todas esgotadas. Isto inclui pósteres de vários artistas a 50 dólares cada, meias a 25 dólares, pins a 30 e até roupa de ginástica, com destaque para bonés e tshirts com design dos anos setenta. A piece de resistance foi um casado de bowling de edição limitada, inspirado na moda da década da revolução, que esgotou quase imediatamente apesar de custar 80 dólares.
Há uma vontade de desafiar as regras, mas dentro de um certo padrão de classe alta. Respira-se um ambiente cheio de contradições: a música alternativa que não passa na rádio e os gritos de inconformismo misturam-se com cervejas a 15 dólares e iPhones sempre abertos na câmara fotográfica. O que mudou, este ano, foi a introdução de um ativismo atípico, materializado no número de bandas hispânicas que tocaram - de Diamante Eléctrico a Chicano Batman - e no discurso de alguns artistas, como os Bastille. Uma festivaleira decidiu resumir o sentimento nas costas de um casaco camuflado, com a frase que está nos lábios de muita gente: Fuck Donald Trump.

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